não é uma caneta

Eduarda Cividini
2 min readMay 1, 2022

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eu estou tentando, eu insisto. mas a caneta não tem tinta.

a minha mão ensaia o movimento das palavras e tenta marcar o caderno, mas elas me escapam, saem voando, sem que eu possa reproduzir seu som. o papel até rasga com a força que eu aplico de novo e de novo e de tanto tentar eu percebo que nem ao menos sei o que quero dizer. não tenho o que dizer, mas quero dizer. quero dizer. viro um grito sem voz. a goela contrai, as cordas vibram, a boca abre, mas nada sai além do silêncio. e da ponta da caneta, só sai o invisível. movimentos ensaiados, mas incolores. um vento que faz o vazio uivar.

“vazio” talvez nem seja a palavra certa. é mais um escuro. uma sala escura cheia de pequenas garrafinhas de tinta, e eu sei que elas estão ali em alguma prateleira, se eu achar posso encher a caneta, então eu tateio a parede com os dedos, mas falta a luz no teto da sala para que eu possa ver e encontrar uma das malditas garrafinhas. o diabo da luz que não acende na sala que não é silenciosa: é cheia de sons altos e estridentes, uma cacofonia que me faz querer arrancar os cabelos da nuca, me faz sentir um incômodo visceral que desce do peito ao estômago e volta como bile, me incomoda como se fosse uma luzinha piscando no quarto onde eu tento dormir, um pisca-pisca que eu não consigo fazer parar, minha caneta sem tinta e eu numa sala escura e tão barulhenta que pode ser que eu fique louca logo se não gritar agora mesmo. então eu grito. e sai som.

ali no escuro eu olho pra mim . pode ser que você veja, eu digo, se tentar ver. eu respondo: é você que precisa abrir os olhos. eu nem sabia que não estavam abertos. como quer enxergar algo com os olhos cerrados de quem tem medo? assim não vai ver a prateleira e pegar o vidrinho e encher o refil pra que finalmente saia alguma coisa que não o nada. não é a luz, é você, abre esses olhos.

e vai adiantar alguma coisa, de qualquer jeito? não vai. eu sei que não vai. não é a caneta que não tem tinta, mas eu que ensaio as palavras erradas. eu sei porque no escuro consigo gritar. estou gritando agora: se as palavras que são erradas, como encontrar as corretas? em quais dos cantos de mim se escondem as sequências certas de letras que vão de uma vez por todas, senão calar o barulho, dar nome a ele?

não é de uma caneta nova que você precisa, eu percebo, e falo em voz alta mesmo que no meio da algazarra quase nem dê pra me ouvir. não é de uma caneta, é de um espelho.

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Written by Eduarda Cividini

escrevo, tomo chá e ouço música.

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