Às mãos que tecem, bordam e pescam
I
(À América do Sul, América Latina, ao Brasil
À língua portuguesa e a espanhola, aqui chegadas pela devastação
E à todas as outras que aqui habitam, fortes como o vento)
Essa terra dos cem anos de solidão, dos quinhentos e vinte e dois, de tantos
Das velhas que morrem esquecidas e pequenas num emaranhado de ontem e hoje
Dos sem-terra que fogem dos tiros de espingarda do fazendeiro
E dos que fundam movimentos e pedem pelo amor de Deus
ou do diabo, o que ouvir primeiro, por um pão para comer
Essa terra das que carregam nos seus ventres mais que crianças,
mas a prova viva daqueles que deixaram e foram deixados para trás
Terra que te ensina desde muito moça que tem dono, e que é terra de sofrer
E de gritos sentidos, mais de violência do que de alívio
De quem sabe abaixar a cabeça e engolir teu choro
Que não vale nada, não dá pra vender
Terra que tentam que seja, mas não é, daqueles forçaram goela abaixo sua língua
Loucos em sua sede de continuar bebendo da água que não lhes pertence
Dos que chegaram aqui cobrando meio rim para ensinar inglês, português, catolicismo
Para tirar de seu quintal maldito aqueles que são dignos — dignidade que não vale de nada –
E deixar o resto definhar
Terra de um povo que faz isso: definha
Pelas mãos próprias, que foram ensinadas a lutar entre si, e não por si
E pelas mãos dos outros, mãos de quem quis ensinar a quem antes já sabia
E definha porque, em seu pau-a-pique de solidão e miséria, não vê saída
Se sente condenado a ser, dia após o outro, a merda de cavalo presa na bota do gringo
II
E não há como usar das línguas que falamos para querer inventar que há,
porque não há, jeito de escapar do sofrimento dessa terra — teus filhos pertencem a ti
E também a ti pertence o estrume, mesmo que esse tenha vindo de longe –
Afinal, te tomaram tudo, menos o medo (e o pé para pisar, dia após o outro,
Porque não dá pra parar)
Na América Latina, as árvores que sobrevivem no meio do resto da mata foram regadas
No mijo daqueles que derrubaram as sementes nativas e venderam e plantaram de novo
Pra vender mais, cortar mais, levar embora tudo que não é deles
No suor e lágrima que não é deles, e na chicotada que na pele deles não doeu nada
Na base do sangue estragou-se a raiz sem que antes se colhessem os frutos
Na América Latina não sabemos viver sem sofrer
E precisamos aprender a viver sem sonhar sonhos inventados, mas sonhos sonhados
Se quisermos continuar com os dois pés firmes nesse chão de terra vermelha
E olhar em volta sem medo e sem mentira e ver que é dor, mas é lar, e é nosso
Não há nesse mundo raiz mais profunda e mais pura do que a das mãos
Desse povo dos que, no meio do vendaval, tecem, bordam e pescam
(Essa terra estava aqui muito antes de inventarem essa solidão que carregamos no peito
E essa língua que agora nos mora na ponta dos lábios e dentro do coração
Na América Latina não sabemos existir sem viver
E vivemos — uma vida muito mais vida do que a de quem nos tirou o direito,
mas não nos tirou a paixão)